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A bêbada

Pantera cor de rosa rodeada de garrafas de bebida alcoólica

Preste atenção a essa mulher bêbada. Ela acaba de ultrapassar as portas do mercadinho e, tonta como um pião prestes a cair, tenta atravessar a rua. Por alguma ironia hilária, a bêbada consegue se orientar razoavelmente pela faixa de pedestres, mas, ao chegar ao outro lado da rua, topa com o meio-fio. Não vai ao chão, mas passa perto disso. São ainda três horas da tarde. A cena, portanto, provoca muito mais riso do que o faria às dez da noite. Todos a observam com discrição, rindo com a mão em frente à boca.

A mulher mesmo não nos interessa. Devemos observá-la, a princípio, só para chegar a um dos seus observadores, um rapaz de seus dezenove anos cujo nome é, pasme, Eurico Neto. Eurico, Eurico, eu sei. Os colegas de turma evitam chamá-lo assim porque não querem ter a sensação de que se dirigem a um velho. Chamam-no de Neto, ou de Riquinho.

Riquinho não ri. Ainda que a mulher bêbada às três da tarde seja para ele um espetáculo inédito, não rirá. Ele, Riquinho, agora parado em frente à fachada da farmácia de onde observa a bêbada, sabe que morrerá antes da hora do jantar.

Esta é uma história complicada.

Há quinze minutos, antes que a mulher capturasse a sua atenção mas não o seu riso, Riquinho recebeu a mensagem de Hugo, seu amigo de treinos. Esta dizia: “Hoje à noite, antes do jantar, você morre”.

A promessa, que poderia soar ridícula a qualquer outro, de imediato lhe deu a certeza de que morreria. Foi exatamente essa precisão que lhe dava o tom de ridículo (“morrer antes do jantar”) que o apavorou.

Há mais um elemento importante neste conto. Não é possível dizer “este morreu, aquele matou” sem revelar a razão de uma coisa e outra. A razão chama-se Maria Alice.

Maria Alice é loira e amava brutalmente o Eurico, embora namorasse o Hugo. Ontem à noite, quando foram a uma pizzaria e o Hugo teve de ir embora mais cedo para acudir o tio numa emergência de saúde, foi Riquinho quem conduziu Maria Alice até a casa. Era a primeira vez, em anos de amizade, que dava carona a ela. Entraram no carro já sabendo que havia ali uma tensão que não devia existir.

Riquinho não a desejava nem nunca desejara. Em respeito ao amigo, não conseguia nem mesmo olhá-la por algum tempo. Ela, antes que o carro partisse, pôs-lhe a mão na coxa.

— Rico…

Riquinho sentiu-se arrepiar desde a panturrilha. Um fato engraçado: ele conhecia esse arrepio especial, que poucas pessoas provocam, e que parece liquefazer os músculos da perna. É o arrepio de quem está prestes a fazer algo grandioso ou a cometer um erro irreversível. A mão de Maria Alice deslizava, lentamente, em direção ao que não devia alcançar.

Ele punha as mãos no volante.

— Maria… — e meneava a cabeça numa negação decepcionada.

— Vem cá, por favor — ela pedia. — Eu não conto.

Eurico fechou os olhos. A primeira imagem que lhe surgiu na mente foi a do Hugo. Forte e louco como um xucro, como um búfalo. É claro que a situação o embaraçava, porque, além de não desejar a namorada do amigo, também não se via tratando a moça com aspereza. O Eurico é, isto é, era, um homem sensível e muito polido.

Com as forças que reuniu, pegou a mão da jovem e a pôs longe da sua perna.

— Não, Maria. Não… Não faz isso.

Ela o fitou incrédula.

— Você vai negar?

— Vou negar.

— Que vergonha!

E ele, que já quase dizia “Vergonha é o que você está fazendo!”, calou. Não conseguia confrontar Maria Alice; nem ela nem ninguém.

Ela avançava a mão pela coxa de novo. Outra vez ele removeu a mão, e agora a olhou por um longo tempo com uma expressão de severidade. Ela retribuiu a este olhar com um de insubordinação, como quem dissesse: “Você acha que pode conter a minha vontade?”

Eurico a deixou em casa sem dar nem mais um pio, e também ela passou o trajeto inteiro em silêncio. E foi desses silêncios sólidos, que apertam e afligem. Ao sair, porém, antes de bater a porta com estrondo, a moça sentenciou:

— Você vai se arrepender.

O Eurico imediatamente se inclinou para a porta, que, no entanto, já se fechara. Vou me arrepender? Mas de quê? Era louca! Pensou em abrir a porta do motorista e, tendo saído do carro, correr até a loira e interpelá-la. Do que vou me arrepender? Hein? Diz, Maria Alice! Uma ameaça não pode ser vaga! A ameaça tem de criar um terror específico! Tem de prometer um mal exato, um único mal!

Não fez nada disso. Voltou para a casa e dormiu com a sensação estranha de que uma mão, uma mão que não podia ser afastada por nada, pesava sobre a sua coxa e se aproximava do meio das suas pernas.

Mas agora, na tarde em que vê a bêbada e não ri, Riquinho recebe a mensagem de Hugo e treme. “Antes do jantar, você está morto”. Acontecerá, é fato, mas por quê?

Ora, o Hugo é um rapaz violento. Ele, Eurico, já o viu agredir um cão e, em outra oportunidade, outro rapaz mais velho. Isto é, Hugo era capaz de fazer o mal não só a um indefeso como a outro homem ainda maior e mais maldoso. Essa maldade extensa, que vai desde o mais fraco ao mais forte, é a que deve ser temida, segundo o Riquinho, porque não pode ser refreada por ninguém.

Dois minutos depois, uma outra mensagem chega ao celular do Eurico: “Eu sei tudo. Maria me contou tudo. Seu covarde. Você está morto!”

Mas como contara tudo, se não havia nada? Se não fizera nada a não ser afastar a mão da moça da sua coxa? Aí estava a coisa. E o que fazer, agora? Estava, finalmente, “se arrependendo”, tal como ela prometera. Mas “se arrepender”, para ela, claramente tinha um outro significado que não o dele. Porque não havia nele um pingo de arrependimento. Haveria se deixasse a mão da moça fazer o que quisesse, explorar a coxa e o que há no meio das coxas, mas não se arrependia de agir como devia. Não me arrependo de agir como um homem do bem, ele pensou.

E se ligasse para Maria? E se, nas poucas horas que lhe restavam até o jantar, pedisse clemência? Era uma loira louca, mas podia ser sensibilizada. E uma mensagem para o Hugo? Não, de jeito nenhum. Era louco e não podia ser sensibilizado. Se podia chutar um cão, podia chutar uma criança ou um doente que agoniza. Só o irritaria mais, porque, tentando justificar o injustificável, acabaria passando por mentiroso.

Aí está: ligaria para a Maria. Olhou outra vez para a mulher bêbada, que ainda seguia em ziguezague pelo outro lado da rua, e teve esse súbito lampejo. Não vou ser refém! Vou ligar e convencê-la! É louca, mas pode mudar de gênio!

Em três minutos, havia sacado o celular e digitado uma imensa mensagem para a Maria. Explicava-lhe tudo, tudo, tudo. E pedia não perdão, mas piedade. Pedia que entendesse o seu ponto; que o Hugo era um grande amigo seu e que ele, Eurico, não poderia nunca traí-lo; que era um rapaz respeitoso; que a artimanha de inventar que ele tentara algo com ela, e não o contrário, era de extremo mau gosto; que ela repensasse, que tomasse um tempo para avaliar essa má atitude…

Antes que enviasse, um encapuzado de moto estacionou à frente da calçada em que Riquinho estava, sacou de uma pistola e deu-lhe cinco tiros no peito. Hugo detestava pontualidade; estava sempre tremendamente adiantado.

Muito mais à frente, ainda na calçada, a mulher bêbada também caía. Caía com algum pudor, como caem os bêbados ocasionais. E, ao contrário do Eurico, caía arrependida e viva.

Imagem por Alexas_Fotos via Pixabay

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