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Intensa

Casal se beijando no mar

Emagrecera três quilos desde que rompera com Sílvia. Pelo oitavo dia seguido, enfrentava o desjejum sabendo que não chegaria à metade da refeição, e começava a considerar que lhe bastava respirar para perder peso. Queria, naquele momento, estar na pele dos amigos que lhe garantiam que, em momentos de estresse, comiam como porcos. Para Paulo, o emagrecimento era o adereço perfeito da ruína emocional.

Como podia ter sido a amante? Sílvia, amante?

Tentava livrar-se da memória rascunhando as provas da semana seguinte, organizando-se para ministrar as melhores aulas de toda a sua vida, mas entre o que pretendia e o que atingia ainda havia um abismo. O seu entusiasmo agonizava. Percebia, no rosto dos alunos, o quanto já não conseguia comunicar a paixão que nutria pela Biologia desde que iniciara a graduação, em tempos que já lhe pareciam pré-históricos. Falava com desinteresse, com a apatia que nunca o acometera, como se envelhecesse trinta anos sempre que transpunha a porta da sala de aula. A classe o escutava com um tédio doloroso, e, ainda que olhasse nos olhos aquele tédio, ainda que percebesse a que ponto decaíam suas aulas antes tão festejadas, não fazia esforços para livrar-se da ruína a que o levava a sombra de Sílvia.

Na véspera, quando respondia à dúvida de um aluno, trocara o nome de alguma substância por “amante”, e a turma rira do seu desconcerto por piedade.

— Perdão, eu… é… — E ele próprio, Paulo, ria como um tolo, flagrado na sua confusão. — Vocês entenderam…

O que o infernizava era o fato de que não podia escapar por completo de Sílvia. Encontrava-a vez ou outra entre os corredores, e, por mais que ela lhe oferecesse um sorriso furtivo e o chamasse aos sussurros para conversar, mantinha-se calado e impassível. Temia, num de seus momentos de fraqueza moral, repensar a decisão tomada, e por isso procurava esquivar-se do toque da mulher. Ainda na véspera, quando cruzava o pátio em direção ao estacionamento, correu para que ela não o alcançasse.

Conhecera-a, mesmo, na noite em que a equipe da escola se reunira na churrascaria mais próxima. Na ocasião, depois de tê-la entretido na sua conversa mole de biólogo, veio a saber que se tratava de uma mulher adorável. Ainda naquela noite levou-a para a casa.

Amaram-se por todos os dias da semana, com a fúria de quem descobre a iminência da morte. Buscavam um ao outro mesmo nos intervalos entre as aulas, quando se rendiam a um prazer furtivo, mas necessário, entre as quinquilharias do almoxarifado.

Duas semanas depois, notando que ainda a desejava com o furor de um adolescente, Paulo começou a considerar que já não era de todo agradável, para um homem de seus quarenta anos, encontrar-se clandestinamente com a professora de Língua Portuguesa, como se tentassem esconder-se de pais que já nem existiam. Foi visitá-la numa daquelas noites, com um buquê nas mãos, e pediu-a em namoro com a inocência de um garoto.

Ela aceitou com uma expressão que lhe pareceu estranha, uma felicidade um tanto acobertada por um outro sentimento obscuro, mas ao final riu, dizendo a ele:

— Você é um amor, Paulo. Mas não precisa comprar flores pra mim. — E, sorrindo como se se dirigisse mesmo a um garoto, beijou-o na testa.

Naquela noite, fizeram o amor com uma leveza quase aérea, como se o compromisso os tivesse libertado do peso de buscar o gozo físico.

Quando acordou, ainda preso ao corpo dela, pela madrugada, acariciou-lhe os cabelos com delicadeza. Sílvia acordou.

— Volta a dormir, meu amor — ele disse.

— Também estou sem sono.

— Pra quem acordou agora, não parece.

Riram juntos, sentindo as respirações um do outro contra suas faces, e o calor que o lençol de repente lhes provocava.

Sem quê nem por quê, mordeu-se de curiosidade:

— Você já se envolveu com alguém da escola?

Ela o encarou com espanto.

— Mas que pergunta!

— Me desculpa… — Coçou os pelos do peito, enquanto estendia o olhar para o teto. — Mas sim? Ou não?

Ela se remexeu na cama, esfregou preguiçosamente o nariz e levantou-se com a languidez de uma gata. Foi ao banheiro. Ao voltar, disse a ele:

— Com o Roberto.

— O Roberto, de Física?

— Não.

A constatação começou a machucá-lo mesmo antes que ela dissesse.

— Mas o outro Roberto, o diretor… — ele considerou —, é… meu amor, ele é…

Ela se sentou na cama para fitá-lo. Abraçou as pernas dobradas.

— Sim, é casado.

A princípio, Paulo tornou-se pedra. Encarou-a por cinco ou dez segundos, boquiaberto, a cabeça esvaziada pela revelação. De imediato, soube que não suportaria o fato de que sua namorada — com a qual fantasiava casar-se, por que não admitir — fora a amante do diretor da instituição em que lecionava. Então tentava comparar a Sílvia de seus devaneios, a Sílvia integra, reta e incorruptível de suas fantasias, com a Sílvia real, que fizera sexo com o homem casado à frente da escola a que ambos serviam. A distinção entre a primeira mulher e a segunda deixou-o pasmo — e ele soube, ali, que a impossibilidade de reverter o ocorrido, de impedi-la de envolver-se com um homem comprometido, ou ainda de transformá-la na exata mulher com quem imaginara estar o deixaria louco.

Paulo descobriu-se, levantou-se com calma e tornou a se vestir.

— Paulo, o que houve?

Virou-se de costas para ela a fim de calçar os sapatos.

— Paulo… Amor… Você vai embora por causa disso?

Ela o puxou pelo cotovelo, mas ele outra vez se inclinou em direção aos pés. Quando, depois de calçar-se, levantou-se e parou ao lado da porta para vê-la, não pôde esconder que derramara uma ou outra lágrima.

— Eu sinto muito. Você foi amante, Sílvia. Amante.

— Isso faz três anos, Paulo!

— E qual é minha garantia de que você mudou? De que posso confiar em você? E você ainda conversa, uma vez ou outra, com ele. — Disse, abrindo a porta.

— Paulo, nós amadurecemos… aprendemos! Você vai me julgar pelo que fiz há três anos?

Saiu sem lhe dar resposta.

Em casa, chorou como se a mãe houvesse morrido pela segunda vez. Tentava considerar o argumento de que não podia julgá-la hoje pelo que fora no passado, mas sabia que ter de aceitar o que ouvira o mataria com o passar do tempo. Olharia para a mulher que tinha ao lado e a sua mente trataria de imaginá-la atracada ao Roberto, a um homem casado que, na pequena esfera da instituição que o empregava, tinha um poder que ele, um reles professor, jamais teria, e que o poderia pôr na rua quando bem entendesse.

Nos dois dias que se seguiram, foi torturado pela aparição involuntária de Roberto em meio até ao mais corriqueiro dos pensamentos. Ainda que acumulasse toda espécie de tarefa para manter-se mentalmente ocupado, imaginava-o a contragosto, sorrindo e distribuindo a simpatia com que administrava assuntos do alto interesse da escola, e recordava uma outra vez, e mais outra, o fato de que esse homem — com esposa e filhos — possuíra a mulher que veio a ser sua companheira.

No fim de semana, obrigou-se a ir ao barzinho com os amigos que o convidaram.

Bebeu e fumou exageradamente. Divertiu-se com os rapazes como há tempos não se permitia e afinal deixou-se dançar com o embaraço de sempre — mas, no dia seguinte, tão logo abriu os olhos, a ressaca e a imagem de Roberto encontraram-no ao mesmo tempo e com a mesma crueldade.

Afinal, desistiu do embate mental e largou-se ao sofrimento.

Aceitou o fato de que não comeria bem durante uma ou duas semanas e de que, quando menos esperasse, o quotidiano havia de substituir a sua amargura atual pela antiga devoção à Biologia, de que tanto se distanciara.

Recebeu, na mesma noite, doze ligações de Sílvia. No décimo terceiro toque, exausto e com a mente em chamas, permitiu-se a loucura de atender.

Paulo! — ouvia-a gritar. — Paulo, por favor! Você sabe que…

Louco, soluçando a ponto de engasgar-se, desligou antes que a voz o fizesse reconsiderar — não sem antes ouvir uma segunda vez:

Paulo!

Na manhã seguinte, dia em que aplicaria a prova, chegou com muita antecedência à escola. Preparara-a no dobro do tempo em que costumava preparar as demais, porque o pensamento excessivo e o cigarro lhe tomaram minutos consideráveis. Tratou ele próprio de dispor as carteiras, uma por uma, na distância que julgava adequada entre um estudante e outro. Releu as questões com o critério que lhe era comum e sentiu-se satisfeito com o próprio trabalho. Depois, sentou-se e esperou.

Quando, ainda durante a primeira hora de prova, Sílvia invadiu a sala, foi à sua mesa e beijou-o na frente de quem quer que os pudesse ver, Paulo já não a tinha em mente.

Nem mesmo a viu entrar: assim que a porta, aberta, derramou-lhe a luz do sol nos olhos, só pôde notar de quem se tratava quando os lábios dela estavam postos nos seus. Nem mesmo os alunos disseram palavra.

— Mas o qu… — começava a protestar quando ela o agarrou, mas calou-se.

Deixou-se beijar e alcançou a paz.

Imagem por Edward Eyer via Pexels

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