Mariana, de dezesseis anos, tem uma cicatriz no supercílio, adquirida aos seis. Aprendeu esta palavra, “supercílio”, naqueles tempos, quando seus familiares a repetiam a torto e a direito a fim de situar o talho no seu rosto. Só anos depois veio a saber que se tratava de um sinônimo de “sobrancelha”, que os tios e a mãe empregavam para darem a si um ar de inteligência.
É precisamente o talho, decorrente de pontos malfeitos, que a incomoda agora, enquanto se maquia para ir à festa da cidade. Falta-lhe pouco para chorar. Seria adequado, aliás, que chorasse. Grita pela mãe:
— Marlene!
Por uma razão que desconhecemos, Mariana não a trata por “mãe”, mas por Marlene. Sobretudo quando cercada pelas amigas, “mãe” causa-lhe certa repugnância.
— Olha! Olha! — diz a Marlene, indicando a sobrancelha à mulher. Vê-se que a sua base, em vez de esconder, acentua a pequena cavidade do sinal.
— Minha filha, você…
— Eu estou ridícula. A cicatriz me deixa ridícula!
— Meu bem, você está exagerando…
— Exagerando o meu ovo! — Dizia, quando exaltada, “meu ovo”, pois as amigas também o faziam. — Dá pra ver a dez metros de distância!
— Não seja boba…
— Marlene! Por que você não entende? — E, aproximando-se do espelho, esticava a pele entre os olhos e a sobrancelha. Observava-a, a princípio, com curiosidade, e então com nojo. — Tem um buraco na minha cara! Uma cratera!
Marlene faz menção de aproximar-se, ao que Mariana recua. Essa mulher, que quer consolá-la sem compreendê-la, não é a companhia que deseja.
— Sai daqui!
— Você é que me chamou, minha filha!
— Mas você não entende!
— Mariana…
Mariana esfrega os olhos; agora, por fim, está chorando. Espontaneamente, soluça, e de imediato cobre a boca com o dorso do punho.
— Me deixa sozinha, por favor…
— Mari, pode conversar comigo.
— Mãe, por favor…
O rosto da mãe, de súbito, cobre-se de luz. Sorri, ainda que num momento inadequado:
— Que chique… Tanto tempo não me chama assim…
O soluço, desta vez, assombra. Mariana, nua depois de tratar a mulher por “mãe”, grita:
— Sai! Chega!
E Marlene, ao sair, enfurece.
— Isso é caso para o seu pai! Desequilibrada!
Enxuga também uma lágrima tímida. Se não há jeito, não há jeito. Desde os quinze está assim, como se o diabo de sinal não estivesse no seu rosto há dez anos. Que inferno! (E só agora esperneia!) O que lhe falta é uma mão firme.
— Beto!
O marido, a princípio, não responde. Todos os dias tranca-se no escritório para se reunir com a equipe (agora rendeu-se ao home office), veda as orelhas com um fone estúpido e não a escuta. Tem de aguentar desaforo e ainda gritar pelo homem da casa!
— Beto! — Chega à porta. Bate, em frenesi. — Beto!
A expulsão, pela filha, agora a faz sentir um ódio insólito. Mal deixara o quarto da menina e já percebia a ofensa como algo terrível, grandioso e imperdoável.
— Beto!
Beto abre a porta, aturdido.
— Que gritaria é essa? Está louca?
— É a sua filha!
Beto deixa a sala. Fecha a porta atrás de si; pela primeira vez vê o choro da mulher.
— O que houve? Que é isso?
— Quero que você vá falar com a sua filha.
— Meu amor, eu…
— Agora. Por favor.
Beto franze o cenho sem dar conta de que o faz. Está entre estupefato e um tanto nervoso. Interrompem-no todos os dias, infelizmente; paciência.
— E ela, está onde?
— No quarto — Marlene aponta apenas, mas permanece na copa. Vai ao filtro e enche para si um copo d’água.
Em frente à porta do quarto da filha, Beto põe-se a bater.
— Mari.
— Pai? — a voz débil de quem ainda chora.
— Abre a porta, por favor.
— Eu quero ficar sozinha.
— Abre.
Mariana obedece, afinal. Abre-lhe a porta lentamente, como se receber o pai no quarto não fosse adequado, mas não o trata com hostilidade. Ergue o olhar para ele. Sente-se mais confortável em ser vista pelo pai do que pela mãe ao chorar. Vê-se que os olhos estão vermelhíssimos. Sob cada um, já há uma bolsa.
— O que está acontecendo?
Ela vai ao espelho; quer rever a marca. Pode indicá-la sem olhar para ela, mas não resiste ao desejo de reencontrá-la a cada novo momento de contemplação.
— Sou horrível, pai.
O homem vai ao seu encontro, abrindo os braços. Mariana não se esquiva do seu gesto. Abraçada, soluça intensamente.
— Você é linda, meu amor.
— Sabe que não, pai. Essa cicatriz! — E, dizendo cicatriz, outra vez soluça.
— A cicatriz parece que está cada vez menor. Você é uma moça linda. Linda. Não tem nem um defeitinho.
A filha sorri amarelo.
— É mentira, pai. O senhor sabe.
— Nunca foi. — Ele a abraça com mais força; é ainda a sua criança. — Se chamo de linda, é porque é linda. — Faz-lhe carinho no rosto e volta a abraçá-la.
Mariana solta as costas do pai. Afasta-se um pouco para fitá-lo profundamente.
— E por que o senhor me deixou feia, pai?
Beto franze o cenho como há um minuto.
— Deixei feia? — E ri no seu espanto. É uma criança, ora; não faz sequer ideia do que diz.
— Foi o senhor, pai. O senhor deformou o meu rosto.
Beto tira as mãos de sobre a filha. Afasta-se em direção à porta, e então se volta para a menina. Eis uma conversa desagradável. No escritório, o chefe deve estranhar a sua ausência abrupta na reunião digital.
— Mariana, nós já passamos dessa fase. E eu quero que você fale baixo.
— Mas é mentira?
Os maxilares, como se contraem! Veja só: uma menina, uma garotinha, acusando-o dez anos depois.
— Mariana, quieta.
— Pai… — Ela sorri, timidamente. — O senhor não contou até hoje à mamãe. Não dói ver o meu rosto esburacado, acabado? A culpa é sua.
— Mariana…
— O senhor disse: é segredo. Se não contar, eu não conto. Pois eu não contei, nem o senhor. Mas hoje, agora, está insuportável.
— Mariana, você está fora de si. Não seja ridícula.
— O senhor foi negligente. A cicatriz é culpa sua.
É mentira. Balançara-a com cuidado, e muito! Na tarde em que foram pela primeira vez ao parque, dera-lhe instruções claras. “Não se balance forte, não, que é bom mas é perigoso.” E, deslumbrada diante do pneu amarrado à árvore, o primeiro balanço de pneu que tivera diante de si, ela o desobedecera. Acusá-lo da cicatriz como de um crime era um ato de desonestidade.
— Você fez o que quis com aquele balanço. Eu me virei por um minuto…
— Estava olhando alguma bunda, não estava?
Beto sente-se, pela primeira vez em anos, estremecer. Há quanto tempo não o provocam? E esta é, especialmente, a provocação de um pai por uma filha. Os braços ao lado do corpo, estala os dedos. Encosta-se na porta.
— Você ficou louca. Não está falando coisa com coisa.
— Pai, não seja bobo. Você e mamãe não estavam lá muito bem, estavam? — Mariana senta-se na beira da cama. Observa-o quase com deleite. — Você parou para ver alguma gostosa. Está explicado. Era uma bunda boa, não era?
— Mariana…
— E se esqueceu da sua filha, no balanço. Antes, a gostosa. E então, quando a filha bateu a cabeça numa pedra…
Beto desfere um único soco, para trás, na porta. É, pode-se dizer, um soco retórico.
— Mentira! — E pronuncia “mentira” já com uma voz que oscila.
Ora, balançou-se com força porque quis. Porque quis, e ponto! É um fato; não podem discuti-lo. Esperou que ele se distraísse, tomou impulso e voou. Na queda, deu com a sobrancelha numa pedra pequena — eis outro fato. Não era sequer uma grande pedra, ou nem estaria viva. Que esconderam da mãe que ela se balançara, esconderam. Pronto: estavam aí as três grandes verdades ocultas. Com elas, resumia-se a ida ao parque e um segredo de anos. Todo o resto era disparate.
— Quando a sua filha chorou, você tirou os olhos da bunda e percebeu que tinha sido um pai malvado…
É uma voz melindrosa, doce, a voz da filha. Há nela uma sensualidade artificial, que o enoja. Diante da filha, torna a tremer.
Dá outro soco na porta. Pode-se dizer, agora, que se trata de um alerta.
— Cala a boca!
— Pai… — ela torna a dizer. Falsifica uma expressão chorosa, frágil. E remove o batom com o antebraço, o que a faz parecer uma mulher que acaba de ser agredida por outra. — Você me deforma e ainda grita comigo?
É impossível, pensa. Ou saio do quarto ou bato. Há uma réstia de consciência, de prudência, que o impede de avançar sobre a filha. Mas há também um limite, que é tênue, e que nunca deve ser ultrapassado.
— Você vai me bater, pai?
Com essa frase, ela o paralisa. Não a pronunciou; gritou-a. E é certo que a mãe a ouviu. Tendo girado a maçaneta, ele torna a olhar para a filha. Não acredita. Definitivamente, não acredita.
Ele abre a porta; quer escapar ao teatro. Mas e a mulher, que ouviu o grito falso: que vai pensar?
— Pai, não! Pai! Por favor!
Estão a um metro e meio de distância. Ele não a toca, não a tocou a não ser quando a abraçou. Repete para si, mentalmente, num átimo: não toquei, não toquei. Abracei, fiz-lhe carinho no rosto. Mas foi carinho. Mas a mulher, a vizinhança e a polícia não compram a verdade; compram a verossimilhança.
— Mariana! Para! — grita, estático.
A filha se atira, então, em direção ao guarda-roupa. Sua testa se abre em sangue. Como sangra, a testa! E ele não a tocou, não pôs nela nem um dedo!
Marlene surge à porta. Tem de forçá-la para entrar, pois o marido, plantado do outro lado, não é capaz de se mover. E Marlene vê, no chão, envolta em sangue, a filha, que grita e grita: “Pai, pai!”, e chora como um bebê.
A mulher volta-se para o marido. Mesmo louca com Mariana, mesmo desejando-lhe mal secretamente, agora arde de ódio contra Beto. Abomina o agressor. O homem olha para o chão, para a filha. E esta, que pode ser vista somente por ele agora, sorri. Como no momento em que rachou a cabeça, há uma década, há nesse sorriso uma malícia de quem despreza qualquer pacto. Diz:
— Eu não acredito, mãe… Não acredito…
E Marlene, que se curva para ajudá-la a ficar de pé, fita o homem:
— Pois eu também não.
Beto deixa-se cair. Sabe que esta derrota, a derrota para uma menina, antecederá muitas outras, muito mais graves e muito mais longas. Só então se põe a chorar.
Imagem por Anna Shvets via Pexels