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Os gatos

filhote de gato

— Se essa miséria der cria no telhado, eu mato. Subo lá em cima e mato a peste de vassourada, não quero saber. Que saco!

— Pai! — embirrava a menina, parando de súbito a colher a caminho da boca, à hora do almoço.

A mulher encarava-o também com desaprovação, mastigando em silêncio.

— Mas que bobagem… Que bobagem — disse ela, afinal. — Não mata, nada. Não tem que matar bicho coisa nenhuma. — E fitava a filha, tentando lhe garantir com o olhar que não permitiria ao marido a concretização da bravata.

— Então vamos ver — disse Fabiano, amuado.

Terminaram calados a refeição, as cabeças baixas, sob o ronronar ininterrupto da gata no telhado.

Há dois meses ouviram-na miar como louca na companhia de gatos que surgiam não se sabia de onde. Das propriedades do entorno, do mato — do inferno, até, dizia Fabiano. E este suspeitava — suspeitava uma ova; sabia, sabia — que estivesse prenha.

Abominava gato. Cachorro, vá lá. Quando lhe dava na telha, ia feliz com o seu beagle, ainda inominado, enfurnar-se no mato à caça de preás. Mas não via no gato nada que lhe agradasse. Não conseguia adivinhar-lhes o temperamento; não sabia se os devia tocar ou manter-se longe deles. Odiava, também, o seu carinho estranho; a esfregação. Que lhe arranhassem a cara, mas não lhe passassem no meio das pernas!

À noitinha, depois do amor sôfrego que fazia ainda com a mulher, murmurou mais para si do que para ela, ao ouvir outra vez o som dos bichos:

— Vou matar esse inferno.

Ana Lúcia, pacificada, pousou-lhe a mão no peito.

— Esquece isso, meu amor.

Ele, as mãos entrelaçadas atrás da cabeça, olhava para o teto como se enxergasse para muito além dele. Na sua fantasia fitava não as telhas em petição de miséria, mas o céu estupendo da roça, a infinidade de estrelas. Matava ou não matava? Apanhava a velha carabina de pressão, apoiava a escada de madeira, já carcomida, num dos flancos da casa, e com dois, três tiros, silenciava a gata e a futura prole. Perfeitamente possível, perfeitamente. E quem eram a mulher e a filha para dissuadi-lo? Se disse que matava, matava. Estava, sim, amolecendo, afrescalhando, à medida que envelhecia.

Não foi capaz de adormecer. Revirou-se nos lençóis, grato pelo sono sólido da mulher, e acabou por levantar-se. Apanhou a carabina, arrastou-se para os fundos da casa e abriu a porta. Inspirou o ar gelado. Se disse que matava, matava. Quem faz e desfaz nesta porcaria de casa sou eu. O vento da madrugada cortava-lhe as panturrilhas de fora. Diabo: esquecia, novamente, a calça. A mulher avisava, ele não vestia. Avançou para o quintal.

Ergueu a custo a escada de madeira, zonzo que estava, e tratou de apoiá-la no beiral. Pegou da carabina e subiu. Sabia, desde que deixara o mormaço da cama, o que encontraria. Espichou o pescoço e apertou os olhos para a escuridão, e nela deparou sem surpresa com o mal que prenunciara: lá estava a gata, e havia parido.

Embora a lua jorrasse, como ontem, o mesmo brilho absurdo, lúgubre, Fabiano não podia distinguir quantas crias eram. Seis, sete, talvez. No terceiro tiro, pelo diabo como a filha acordaria, ou até a mulher. Não havia sono, não havia hibernação que resistisse. Ouviria ladainhas intermináveis, e a menina o olharia torto e trataria mal por semanas inteiras, embirrada que era. A mulher, por conta mesmo do estado em que ficaria a filha, procederia do mesmo modo. Paciência.

Olhou para os gatos enquanto matutava. Ouvia-os miar já sem o ódio cego do almoço. Ainda assim apontou para eles a carabina. No terceiro tiro, acordariam lá embaixo. Surdas, não eram. E miavam bonito, baixinho, aqui à sua frente, os filhos da puta. Disse que ia matar e não mataria coisa alguma. A credibilidade da sua palavra iria, com isso, às favas; outra vez, paciência. Suspirou enquanto ponderava. De fato, amolecera com os anos, com a filha — o pior. Desfez a postura, levou a carabina ao ombro e desceu, vencido, imprecando a cada degrau contra a própria fraqueza. Depôs a escada onde a encontrara, esfregou-se nos braços para espantar o frio e entrou em casa. Deitou-se. A mulher dormia.

Acordou muito mais tarde que de costume, com o sol já atravessando as cortinas para castigar-lhe os olhos. A filha gritava:

— Ele matou, mãe! Matou!

Chorava soluçando, como se criancinha. Fabiano ergueu-se. Pôde ouvir a mulher já no corredor, vindo até ele:

— Você matou a porcaria dos gato, Fabiano! Fabiano!

Não se irritou em momento algum. Deu com a esposa, fora de si, na porta do quarto; encarou-a com a expressão derrotada de quem já não suporta repetir a verdade e disse-lhe: “Não matei”. Caminhou lentamente para fora da casa, chegou ao quintal e olhou à sua volta. A filha vinha socá-lo, chutá-lo, enquanto o xingava. Ele permitiu, mas segurou-lhe os braços com carinho segundos depois para poder avançar. Andou até o amontoado de pelos que via sobre a grama e abaixou-se para examiná-lo. Eram três filhotes, pequeninos como a palma de uma mão. Mortos, todos.

Tudo que havia em seu rosto desabou; os músculos da face pareciam também esmorecer com a catástrofe. A mulher vinha, pelo outro lado da casa, para intimidá-lo, pronta para fazer como fizera a filha, e ofendê-lo, e agredi-lo — mas desistiu ao deparar com o semblante do marido: escurecido, semimorto, de quem descobre agora a impotência diante de um cadáver. Aquele era o seu choro. Sem uma única lágrima, sem um suspiro sequer, mas choro. Tocou os corpos, miúdos, coitados. Disse mais para si do que para a mulher:

— Não matei. Não matei.

— E como não matou se estão aí no chão?

Num estalo, a consciência o acudiu:

— Não matei. Se fosse pra matar, matava com tiro. Tomando tiro, não tinham caído do telhado. Tinham ficado lá em cima, morto, fedendo. Se caíram, caíram sozinho. Ou a mãe que empurrou.

— Mentira, Fabiano.

O homem revirou, com toda a decência, os corpos na direção da mulher. Abriu-lhes o pelo para mostrar que não havia sangue, não havia furos. Ela compreendeu e assentiu. Acenou para a filha, que chorava muitos passos atrás do pai, chamando-a. Ela veio e abraçou-a pela cintura, fungando. A mulher lhe disse que não fora o pai. Houve dúvida também aí, mas a mãe usou com a filha os argumentos que o marido lhe dera.

Fabiano levantou-se dolorido para apanhar a escada. Encostou-a no beiral, desta vez pelo lado direito da casa, mais próximo de onde nascera a ninhada. Subiu. Lá, encontrou outros três pequenos, sozinhos. Varreu com a vista toda a extensão do telhado, e constatou, afinal, a desaparição da gata. Cutucou os pequenos com cuidado, com a ponta dos dedos. Ao menos um estava morto; os outros miavam timidamente, mas sem descanso. Pediu à mulher que lhe trouxesse um saco de estopa e uma sacola plástica. Desceu os degraus, amassou a estopa e meteu-a dentro da sacola, como para forrá-la. Tornou a subir. Segurou os bichos com toda a delicadeza que as mãos de dedos grossos lhe permitiam e pô-los na sacola, pacientemente, um ao lado do outro. Desceu e, sem olhar para as duas mulheres, enfiou-se em casa. Sabia que lhe viriam no encalço. Ditava para o ar:

— Liga aí pro doutor Marcelo, fala que estou levando dois gato pra ele ver. Filhote. Liga agora!

A filha apressava-se a ligar. Fabiano bradava:

— A chave, a chave!

A esposa, onisciente, encontrava as chaves do carro, entregava-as ao homem.

— E se doutor Marcelo não puder atender?

— Atende, como não atende? Se não puder, eu faço atender. Se os gato não tiver vivo semana que vem, eu mato é ele.

Trancaram a casa às pressas, meteram-se na maltratada picape e desceram a serra. Fabiano alimentava com um furor abrupto, inacreditável, a ideia de vê-los crescer, de chamá-los por um nome. No banco do carona, a mulher acariciava a sua coxa com mãos de sopro, sorrindo como uma Monalisa — espantada, ainda, mas esperançosa. A filha, no banco traseiro, levava no colo a sacola em que Fabiano acomodara os filhotes. Agradava-lhes as cabecinhas enquanto cantarolava em voz baixa, para embalá-los, imaginando-os já muito maiores, saudáveis e bonitos, correndo pelo quintal à caça dos ratos enormes que escapavam pelo galpão.

Imagem por guvo59 via Pixabay

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