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Perdão

homem rezando em igreja

À noitinha, coberto junto à esposa por um colchão que os fazia suar mas debaixo do qual não se atreviam a sair, Emílio gabava-se do passado. Não sabia o que o levara, na sua despretensiosa conversa com a mulher, a recordar a infância. Mas, a cabeça sobre o braço dobrado, fitava o teto e sorria, em êxtase:

— … pipa? Cê tinha era que ver. Botava o mundo todo no chinelo. Não sobrava uma, nem umazinha. O meu bairro ficava fulo, queria o meu fim, porque eu cortava tudo. E nas peladas de rua era o primeiro escolhido. Isso até você viu, que eu jogava bonito.

Ela sorria, flagrando-o na sua inocência de homem que se lembra sempre mais forte, mais habilidoso e mais bonito do que fora. Como toda boa esposa, não sorria para zombar dele, mas porque a comovia a inocência com que Emílio retornava à infância pobre e achava-se tão vitorioso e tão afortunado. Sofrera tanto e registrara na memória só o prazer. Ela, mulher, acostumara-se a lembrar sempre as tarefas mais mesquinhas que tivera de cumprir, o labor dobrado quando a mãe morrera, as espinhas que a trancaram no quarto, e a zombaria. E o seu homem, como todo homem, imaginava-se o herói de si mesmo.

— E na escola? — perguntou a ele. A cabeça no peito do marido, admirava-o.

— Ih, na escola você conhece… que eu reprovei pra mais de vez na sétima série, não nego. Mas era bagunceiro, também, brigão que só. E numa semana saía na mão com uns três diferentes. Todo mundo via, eu também que gostava. E nunca apanhei…

Joice imediatamente estranhava. Interrompeu:

— Nunca apanhou?

E o outro, que já tagarelava as suas pretensas vitórias, embolou-se.

— Como assim?

Joice corou, encabulada. Não era intenção sua envergonhá-lo nem contestá-lo. Ouvia-o falar sempre com carinho. Vê-lo enxergando bravura, beleza, onde não havia, dava-lhe esperança — a ela, Joice, que não a tivera no passado e nem a nutria em relação ao futuro. Queria sugar a ingenuidade do marido, bebê-la, para não enlouquecer. Já se corrigia:

— Não dizendo que é mentira, meu amor.

Mas Emílio calara. Reexaminava a memória, então. Deixara de olhar para o teto e levantara-se um pouco, de modo a se recostar na cabeceira. Olhava para a frente e não para a mulher.

— Meu amor… — dizia, arrependida.

O homem levou, estático, uns dois minutos. Não lhe disse uma palavra senão quando caiu em si:

— Apanhei.

E ao dizer isso ainda não voltara a olhar para Joice. Levantou-se no mesmo instante. Esqueceu-se de calçar os chinelos e foi direto à cozinha, onde, ao abrir a geladeira, pôs-se a procurar nela alguma coisa que não queria e que não existia.

Joice vinha no seu encalço:

— Meu amor…

E ele, curvado para a porta da geladeira modesta, não só dizia, mas expunha uma humilhação esquecida:

— Apanhei. Na escola, eu apanhei.


Chegou ao supermercado, no dia seguinte, com uma antecedência inédita. Insone, cuidara a noite inteira para que a esposa não o percebesse acordado. Vinha-lhe, em pancadas espaçadas, a memória da luta; isto é, da sova. Apanhara, e apanhara mesmo, vergonhosamente, na frente de todos. Num primeiro momento, lembrara-se não só da agressão, mas dos risos. Indicavam-no às gargalhadas, porque era sempre ele a iniciar as brigas e, desta vez, quando tentava revidar, perdia. Depois lembrou-se de que nunca mais desafiara ninguém, nem caluniara ninguém, nem mesmo o mais franzino dos meninos. Foram, a briga perdida e a humilhação que a seguiu, as razões para que amadurecesse. Mas lembrá-las fazia subir nele um ódio estranhamente misturado a uma enorme frustração. Porque se supunha invicto. Agora, descobrindo-se derrotado, toda a narrativa que criara em torno de sua infância ruía, como se boa parte de sua vida fosse um engano tremendo.

Chegavam os outros empregados. Punham os coletes que exibiam o logotipo do supermercado e zombavam brevemente uns dos outros. Alguns já se encaminhavam às prateleiras, onde começariam a repor lenta e amargamente o estoque. E Emílio foi-se com eles. Era função sua, como um dos três responsáveis pela grande seção de laticínios, dar conta de ordenar as embalagens de leite das mais variadas marcas, sete delas por fileira. E, quando punha as mãos numa nova embalagem, sentia a humilhação dos socos do seu antigo rival. Sentia-os na carne, os socos de trinta anos que ainda o feriam. Lembrara-se do motivo, o pior: o outro rapaz abaixara-lhe a bermuda no meio do pátio apinhado. Chegara agachado por trás dele e, num golpe rápido, puxara a peça que omitia a vergonha de sua cuequinha estampada. Não podia precisar agora quais eram as figuras na sua roupa íntima, mas as sabia ridículas pois mesmo tendo agido depressa e puxado a bermuda de volta ao seu lugar, os outros as viram e gargalharam como num circo. Mesmo dez minutos mais tarde, ainda o apontavam rindo e lembrando-se uns aos outros da revelação.

Na saída, tentara revidar. Esperou que o malfeitor estivesse sozinho — ou, por outra: um tantinho distante dos colegas mais fortes, para dar-lhe, correndo, um golpe de caderno na cabeça. A esmo, gritaram:

— Cuidado! Abaixa!

Mas o caderno atingiu-o em cheio e o outro cambaleou imediatamente. Levantou-se com o sangue quente, e partiu para cima do não tão grande mas sempre intacto Emílio. Este, por infelicidade, não pudera prever que o outro fazia caratê. Foi, pela primeira e última vez, derrotado, e a massa de alunos em torno, em vez de se compadecer do humilhado do recreio, ria ainda mais agora que o vira apanhar. Além da cuequinha, era um frágil. E aquele riso geral, mesmo agora enquanto repunha as caixas de leite, não lhe saía da cabeça.

Emílio viu, de rabo de olho, passar o subgerente. Era um homem também roliço, pouco mais que ele. E o viu parar na padaria. Sentou-se a uma das mesinhas de madeira, folgadamente, e começou a conversar com a Zilda, que cuidava da chapa. Quando deu por si, Emílio fora até ele. Ainda tinha na mão direita, sem se dar conta, a caixa de leite.

Assim que o viu, o outro apitou como de costume:

— Meu xará! — E sorriu aberto.

Emílio sentou-se à frente dele. Sentiu que lhe escapava um sorriso amarelo.

— Esse leite é pra mim? — perguntava o outro.

Emílio só então constatou a embalagem que pousara na mesa. Sorriu, outra vez sem querer. E o seu sorriso era horrendo.

— Que cara é essa, rapaz?

Emílio encarava estático o outro Emílio. Não piscou, nem falou, por meio minuto. O subgerente se espantava:

— Ei! Ei, xará! O que houve?

O repositor de estoque calava. Fitou a Zilda, que, mesmo detrás do balcão, olhava-o de volta alarmada pela sua imobilidade. Os olhos perdidos no rosto do outro, não se ouviu dizer:

— Na sétima série o senhor puxou minha bermuda prum pátio inteiro ver.

De súbito, o Emílio subgerente corou. Não imaginaria nunca aquela acusação tão tardia. Engasgou-se com o café:

— Emílio…

— Mas o senhor puxou.

O subgerente não podia deixar de enxergar na situação algo de ridículo. Ria amarelo, sem alarde:

— Emílio… Coisas de criança…

O outro não desfitava.

— Por favor… Emílio, por favor. Sejamos francos. Trabalhamos juntos, aqui, há dois anos. E posso dizer que somos amigos. Somos amigos? — A memória, distante também para ele, voltava-lhe aos poucos, opaca, nunca confiável. — Não sou quem puxou a sua bermuda nem você é o menino brigão. Olha aí pra você, um homem feito, pai, marido.

— E você, que é subgerente?

— Emílio… Você fala como se eu ganhasse uma grana de doutor. Subgerente não é porcaria nenhuma.

— Mas eu tenho inveja.

— Inveja de quê, rapaz? Inveja tenho eu de você. Trabalha feliz, conta as suas histórias que matam esse pessoal de rir, e, como eu disse, é pai.

— Meu filho é burro igual eu.

— Você está sendo cabeça dura.

O nosso Emílio do início já reconhecia a loucura de ter-se sentado à frente do outro Emílio. E falava sem pensar, como um louco. Mas fora sobretudo o medo de ser uma mentira sem tamanho que o levara àquela estupidez. Meneou a cabeça, contrafeito. Fez menção de se levantar.

— Bobeira minha. Vim aqui e falei é um monte de merda. Desculpa aí pro senhor; eu vou indo.

O seu xará ergueu-se esbaforido, estendeu a mão para o ar:

— Não! — E corrigiu-se: — Por favor, ainda não. Eu é que peço o seu perdão. Vem cá, vem cá.

E, como o outro viesse, puxou-o para muito perto de si. Passou-lhe o braço esquerdo sobre os ombros, num meio abraço, e lhe disse:

— Naquele dia eu te sacaneei… Sacaneei. — E quase afundava o peito do funcionário com o indicador. — E hoje você já é homem feito e eu também. Mas ninguém merecia. Eu, se fosse gente, tinha deixado você abaixar a minha bermuda e ficado quite. Fui covarde, fui. Mas naquele tempo eu não podia pensar que nem hoje.

Emílio, o nosso Emílio, olhava para baixo. Olhava aliás para o indicador do outro.

— Quer se vingar?

O repositor alçou o rosto. Olhou o outro Emílio fundo nos olhos, e eram de um castanho que, de relance, lembrava o verde. Castanho ou verde?

— Quê! Esquece isso… Vingar que nada…

— Vingar, rapaz. Olha aí o problema na sua cabeça. Uma coisa ou outra a gente só resolve dando troco.

De novo Emílio via só o indicador, que agora lhe mostrava o gigantesco pátio.

— Quer abaixar a minha calça aqui, agora? Pra todo mundo ver?

O outro arregalava:

— Que é isso?!

E o superior o consolava:

— Abaixa, Emílio. É um segundo.

— Pelo amor de Deus…

— Abaixa, cagão. Vai ser covarde agora?

E afastando-se do colega caminhou para o centro do lugar. Desafivelou o cinto e virou-se para a amplitude do supermercado. Dali viam-se as atendentes, muitos metros adiante, além dos longos corredores de produtos, que ainda não haviam iniciado o expediente. Não veriam nunca o espetáculo da nudez gorda e feia do subgerente. Este olhava para as prateleiras que o defrontavam como se fosse um Moisés, e o supermercado o grande mar que abriria. Ergueu os braços:

— Abaixa, Emílio.

E o outro Emílio, o Emílio repositor, que não perdoaria nem a si nem ao outro se não se vingasse como o menino humilhado que fora e de certo modo ainda era, hesitou. Ponderou um instante, e não enxergava senão as calças daquele velho rival na sua frente. Ignorava a Zilda, a padaria, o açougue e todo o empilhado de mercadorias. Exporia o outro ao ridículo, e não via por que o submeter à mesma humilhação por que passara. Era um homem feito, pai e marido. E a sua vida não consistia numa imensa mentira, mas em um ou outro engano pontual, talvez. Estava tudo, portanto, perfeitamente bem. E tremia por inteiro, exaltado. Não puxaria, nunca.

— Pode puxar, Emílio.

Abaixou-se e puxou. No ato de puxar, encontrou uma felicidade de criança.

Imagem por aamiraimer via Pixabay

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