Quando ergueu o controle remoto e pôs fim à voz do âncora do noticiário, Maria Inês chorava em silêncio em razão do filho assassino.
Era já noite e as manchetes de toda a manhã se repetiam a torto e a direito: a arma do crime, a hora do crime, o rosto do criminoso, repleto das tatuagens horrendas de que ela só viera a saber ao olhar para a foto do filho já detido, naquele mesmo noticiário: os olhos cínicos da infância, a cabeça raspada.
A um cômodo de distância do sofá em que agora derramava as lágrimas, há seis anos, durante o jantar, dera o primeiro tapa no rosto de Ricardinho — Ricardinho, naqueles tempos!:
— Por que tio Zezé é preto? — ele perguntara.
Maria Inês e o pai soltaram os talheres e encararam-no como se ele os houvesse estapeado.
— Olha como você fala do seu tio. Seu tio José é negro porque os pais dele são negros, gente. O que tem a cor da pele de tio Zezé agora?
Ricardinho mastigava os brócolis pretensiosamente. Respondia-lhes com a boca aberta:
— É tão preto. Muito. Não gosto. Parece sujo.
Ricardinho tinha já doze anos e nunca sentira o peso das mãos do pai ou da mãe, ou o ardor das marcas de uma fivela. Maria Inês, no entanto, levantou-se um pouco — o suficiente para alcançá-lo com o braço direito — e deu-lhe o tapa mais forte que pôde por sobre os pratos do jantar.
— Se falar mais uma vez dessa maneira dentro de casa, você leva a primeira e única surra da sua vida.
Ricardinho ergueu-se de súbito, enxugando raivosamente os olhos úmidos. Retirou-se a passo firme para o quarto, batendo a porta atrás de si. O grito, filtrado pela porta, chegava aos ouvidos da mãe e do pai já em baixo volume:
— Agora não posso detestar o sujeito porque é preto!
Maria Inês e o homem levantaram-se de imediato. Chegando à porta do quarto, bateram.
— Abre essa merda!
— Não! — a voz abafada do filho.
Batiam, então, com mais violência.
— Abre isso daqui, Ricardo! Agora!
Ricardo abriu a porta. O pai avançou para ele, o dedo em riste:
— Eu quero saber de onde é que você tirou isso, agora! Essa conversa!
Ricardo sentara-se na beira na cama, os braços cruzados. Olhava para o chão, sem dar mostra de que responderia.
— Onde? Eu quero saber!
Não falava.
— Onde, Ricardo?
Ricardo agora permitia que o olhar vagasse. Fitava o teto, a estante do outro lado do quarto, os próprios pés. Não descruzara ainda os braços.
— Mais uma vez… — disse o pai.
Ricardo deitou-se de costas para os dois, como se tentasse penetrar a parede com a cabeça. Murmurou:
— Aula de História.
Entreolharam-se, o pai e a mãe, desarmados.
— Aula de História? E quem é seu professor?
Ricardo silenciava cinco, dez segundos, antes de lhes responder.
— Não foi o professor. Li no livro. Sobre a Alemanha, na Segunda Guerra.
O pai, surpreso pela tolice, deu meia volta para golpear a porta, caído:
— Puta que o pariu!
Maria Inês levou a mão aos olhos e riu-se de deboche.
— Meu santo Deus… Você agora é o novo Hitler?
Ricardo, a cabeça apertada contra a parede, chorava. Virou-se outra vez para os pais.
— Não posso pensar por mim mesmo?
A mãe retorcia a boca num ricto de repulsa. O pai o encarava, o cenho franzido.
— Pelo amor de Deus, Ricardo. Você não é tão burro.
— Posso acreditar no que eu quiser.
O pai retirou-se do quarto, chamando Maria Inês. Esperou que a mulher também saísse para então ir à cama do filho, agachar-se para olhá-lo nos olhos e anunciar:
— Amanhã, você volta ao psicólogo. Se essa idiotice de nazismo continuar, você apanha até parar.
Ricardinho voltou, de fato, ao psicólogo, ao qual a mãe o levava desde muito pequeno por crer que o filho era demasiado genioso para a idade. O pai sugeriu ao professor de História, que veio a conhecer pessoalmente, que ressaltasse para a classe que o totalitarismo era a barbárie, sobretudo se associado a preconceitos de qualquer ordem.
Pelos próximos quatro anos, aquela intimidação inicial e o zelo posterior com a saúde mental do filho pareceram, a Maria Inês e ao pai, render fruto. É certo que Ricardo transformou-se num adolescente calado, arredio e com uma afeição especial pelo computador — à frente do qual passava a maioria das madrugadas —, mas tudo isso lhes pareceu comum para a sua idade.
A surpresa maior, no entanto — a gota d’água —, deu-se no dia em que, tendo saído do banheiro sem vestir a camisa, Ricardo passou pela mãe e esta pôde ver as costas nuas do filho — sem jamais saber, dali por diante, se ele o fizera de propósito ou por um descuido.
Puxou-o pelo braço no mesmo instante, o rosto retorcido:
— Que porcaria é essa nas suas costas?
Ricardo puxou o braço, com força, para livrar-se do toque da mulher:
— Me larga.
— Maurício, vem cá!
O pai surgiu, esbaforido, à porta do quarto:
— O que é que foi?
— Olha pra isso! — Maria Inês puxou o filho para si e virou-o de costas para o homem. Ricardo não se esquivou da demonstração, talvez porque quisesse, de fato, chocar também o pai.
Maurício observou as costas do filho por um momento. Pareceu, a Maria Inês e a Ricardo, que partiria para cima do garoto como jamais o fizera ou que ao menos berraria para que o bairro inteiro o ouvisse. Afinal disse, apático:
— Fora.
Ricardo arregalava os olhos:
— O quê?
— Fora da minha casa. Você já é grande e sabe o que é certo e o que é errado. Se tem condição de pôr esse lixo na pele, têm condição de se cuidar sozinho. Pode pegar suas coisas agora.
Maria Inês encarava, incrédula, o marido. Em parte, ainda acreditava na possível remissão do filho — mas reconhecia a insensatez desse raciocínio. Não queria, sobretudo, o pior: um nazista em casa. Teve de suportar ver Ricardo abrindo as portas do guarda-roupa para reunir tudo quanto pudesse carregar e então deixar a casa com uma única mochila nas costas — se com destino definido ou não, não lhes disse. Chorou ao vê-lo partindo, e não se envergonhou, nem no momento nem mais tarde, por fazê-lo. Maurício também chorava, silenciosa e amargamente, pela decepção. Abraçaram-se quando o filho se distanciava do portão de casa e viram-no sumir na próxima esquina cientes de que, se não haviam feito o certo, fizeram ao menos o que lhes cabia: a medida drástica de que Ricardo precisava.
Pela primeira e última vez viam, nas costas do filho, a suástica tatuada.
Agora, o crime. Dois anos mais tarde, sem notícia alguma do filho, recebia-a pela boca de quem menos esperaria: pela do âncora do noticiário, que o pintava como um monstro — o que não se afastava da realidade, pelo que o restante das matérias lhe dizia.
Ricardo matara a tiros, na manhã daquele dia, dois transeuntes que usavam quipás. Enquanto fugia, baleara um jovem negro, e, em seguida, deixara-se capturar pelos policiais.
Estava certa de que, mais cedo ou mais tarde, o seu nome e o de Maurício seriam citados nas manchetes — mas, ainda mais doloroso do que encarar o iminente ostracismo de mãe de assassino era ver Ricardo, uma vez após a outra, mostrando à câmera e aos policiais o mesmo sorriso louco com que o vira sair de casa, agora rodeado da dezena de suásticas que tatuara pelo rosto — e lembrar-se daquele primeiro jantar, daquele primeiro tapa, com a certeza de que pusera no mundo uma criatura abominável.
Imagem por JosepMonter via Pixabay