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Papai não volta

Garoto com expressão triste

Naquele dia, recebeu das mãos da mãe, e não do pai, o prato de arroz, feijão e galinha.

— O pai não vem pro almoço? — perguntou-lhe, o rosto torcido.

— Não vem, não, dengo. Seu pai hoje trabalha dia inteiro.

Pedro era incapaz de compreender a ausência do homem, naquele dia específico, na mesa do almoço. Tinha já dez anos e não comia a refeição sem que o pai lhe fizesse o prato da maneira como ele preferia. O pai, também, não lhe negava esse capricho; fazia-o com gosto, sorrindo como o dono que agradasse um cãozinho.

Nem um, nem outro saberia explicar como surgira aquele hábito improvável. O pai, desde sempre, quisera o pequeno sagaz e independente, de modo que o mimava o mínimo que podia ou, preferencialmente, não o mimava. Foi, porém, na doença de Pedro que se permitiu amaciar a rudeza e montou-lhe o prato do almoço pela primeira vez — embora viesse a esquecer pouco depois, junto com o filho, aquela tarde inaugural.

Deparou com Pedro no sofá, voltado para a televisão, enrolado no cobertor como quem quisesse escapar de um frio terrível, e teve de lhe entregar o prato com os talheres e sentar-se ao lado dele.

— Não acostuma, não — disse, afagando o cabelo do menino.

No dia seguinte, como a doença não desse trégua, repetiu o gesto, e no outro dia, e também no outro.

A única sequela da doença foi o amolecimento do coração não do filho, mas do pai. Em uma semana, os sintomas haviam desaparecido de todo, mas o prato de arroz, feijão e galinha continuava a chegar às mãos do pequeno pelas mãos do homem. Nos primeiros, ainda lhe repetia que não se acostumasse, que ficaria mal-acostumado, que estava sendo dengoso e que logo, logo, a mordomia acabaria, e que um homem daquele tamanho já não podia receber comida das mãos de outro. Passada a semana, contudo, as frases, sempre ditas em tom de gracejo, foram esquecidas. Sobrou, sim, o gesto, que conservava a bondade e o deslumbramento do primeiro dia.

A mãe, habituada ao gênio arredio e solitário do marido, também não compreendia aquela entrega tão súbita e tão apaixonada. Desabafava menos para o filho que para as paredes:

— Seu pai não volta do trabalho sem passar no bar. Cansa, ele vem louco. Chega aqui e é aquela cara amarrada, acabada, se não beber. E o bar, sabe-se bem como que anda. Bebe pra aguentar… Roça é roça. Fica lá, debaixo de sol o dia inteiro, pra ganhar um coisa à toa. Essa coisa com você, de pratinho na mão, de mordomia, você aproveita. Nem pra mim, em época de só eu e ele! Nem pra mim! Você aproveita…

Naquele almoço em que o pai lhe faltou, Pedro sentou-se outra vez no sofá, diante da velha televisão. Tendo comido, buscou entreter-se com os desenhos animados, mas estava dormindo logo no primeiro quarto de hora.

Acordou, horas mais tarde, com o choro da mãe, os gritos da mãe.

Só então atinou para o volume da TV, que berrava para a vizinhança. A mãe, ao telefone, uivava o nome:

— É o Roberto! É o Roberto, meu Deus!

Pedro levantou-se lenta e preguiçosamente. No alvoroço, desacelerava em vez de agitar-se. Era noite já e o pai não chegara.

— Que foi, mãe? — perguntou à mulher, que ia de um lado a outro como louca.

Como ela não respondesse, repetiu:

— Que foi, mãe?

Na TV, mais um esfaqueamento — na sua cidade, àquela hora. Como as notícias voavam!

Pedro perseguiu a mãe, segurou-lhe a barra da saia. Só compreendeu a gravidade do ocorrido quando ela, em vez de notá-lo, desviou-o com a mão livre, como se afastasse um obstáculo desimportante.

— Mãe! Mãe!

A TV, no telejornal local, como berrava! E o homem esfaqueado no bar, que perdera muito sangue e que havia sido conduzido às pressas ao hospital da cidade… Como se tornara violenta, a sua cidade!

O portão da casa se abrira, e o burburinho das vozes tomava conta da varanda exígua. Um carro buzinou defronte da janela.

— Marlene! — a voz de um homem.

Pedro olhou para a mãe, que, indo como um furacão em direção à porta da frente, reparou pela primeira vez no filho. Tinha os olhos vermelhos de quem chorou a morte de um irmão. Agarrou-o pelos braços e inclinou-se para gritar com ele, a voz úmida, exaltada:

— Você não sai daqui! Não sai! Dona Lena veio ficar com você!

— Mas, mãe… — começava a choramingar.

— Fica aqui, e para de olhar televisão! Desliga!

A mãe saiu, aérea na sua aflição. Entrou no carro do homem que a chamara pelo nome, enquanto Lena, vizinha que adorava a ele, Pedro, tomava a frente da massa de curiosos que se acercara do portão e entrava na casa.

— Pedrinho, pra dentro! — disse-lhe a mulher, não com raiva; antes, com piedade.

Fechou a porta e sentou-se no sofá, trazendo Pedro para o seu colo. A criança chorava, sem conceber a loucura ao seu redor. Não conseguia atinar para as razões de desligar a TV imediatamente, nem entendia a gente assombrada em frente ao seu portão, a saída da mãe, o choro da mãe, o esfaqueamento a que o repórter chamava de barbaridade.

— Vamos desligar essa televisão, não vamos? — disse, esbaforida, dona Lena, e pôs-se a procurar o controle remoto nos vãos do móvel.

Achou-o depressa, aliás — mas, antes de apontá-lo para o aparelho e calar o noticiário perverso, não pôde impedir que a imagem do esfaqueado no bar (ah, o bar!) entrasse pelos olhos de Pedro para lhe trazer a noção súbita, dolorosíssima — embora infantil a seu modo —, de que o pai não lhe entregaria nenhum prato de comida no dia seguinte, nem no próximo, nem em nenhum outro.

Imagem por bennett tobias via Unsplash

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